Publicado em 20/12/2008 01:25 na Comunidade Mídia Social - Rede Peabirus
O tempo: 1978
O espaço: Escola Municipal Classe em Cooperação Cruzada São Sebastião – Rua da Democracia, s/nº - Parada de Lucas – Rio de Janeiro
Os personagens: eu, professora primária da Prefeitura, com 19 anos; ele, Enéas, aluno de 9 anos; a turma de 3ª série
A história:
Eu - Curso Normal em colégio particular, bairro de classe média; estágios com alunos bem nutridos e que viviam confortavelmente.
A única aprovada da turma no concurso público: misto de orgulho e pânico; desejo de ir, vontade de ficar. Liberdade = meu próprio salário aos dezessete...
Primeiro dia de apresentação na escola. Primeira vez numa favela. A mãe junto. Na frente da birosca, três rapazes. Vários fius-fius e a frase: “Hu-hu! Professorinha nova na escola!!!”
E segura a mãe que quer voltar, porque não vai deixar a filha trabalhar naquele lugar! E briga e convence.
Mama mia!
(...)
Segundo ano no magistério público. Não eram mais os anos dourados... ainda bem!
Conflitos internos e não. Abertura leeeenta e gradual. Primeira greve. Aderir ou não.
Aderi. Ponto cortado. Salário idem.
Dúvidas e dúvidas em profusão. Muito pouco do aprendido para alunos idealizados servia para os alunos reais.
Curso de Letras em andamento. Atração total pela pesquisa lingüística, pelos meus alunos e pelo meu futuro marido. Não nessa ordem.
Casei.
A turma - 3ª série. 45 alunos apaixonantes, numa sala onde cabiam 30. Aluno sentado em carteira na porta da sala. Professora espremida entre os alunos e o quadro de giz.
E que aula é essa? Ensinar? O que ensinar? Como?
Reinventar tudo. Contar histórias, escrever histórias, cantar, cantar muito. E fazer contas, resolver problemas. Falar da água, do tempo, da vida. Ah, ia esquecendo... falar dos anfíbios.
Nos fins de semana, levava algum aluno para a casa de recém-casada.
A maioria nunca havia saído de dentro da favela.
Entrar num ônibus e tomar banho de chuveiro eram as novidades/surpresas iniciais, ainda na sexta-feira. O ápice da estada: a ida à praia! Aquela lambeção de braços, aproveitando o salzinho...
(...)
Conflitos, sempre. Angústia. Que é que eu tô fazendo aqui? Isso que ensino faz algum sentido pra vida dessas crianças?
O Enéas - O Enéas era o menino mais espevitado, inteligente, bem humorado e generoso da turma. Não calava a boca! Não parava quieto! Magérrimo, desconjuntado, tinha um problema cardíaco (a mãe me pedia para que eu não o deixasse correr... como se isso fosse possível) e enxergava muito mal do olho direito.
Quando esteve na minha casa, ficou vidrado, ouvindo meu irmão tocando, e se apaixonou pelo violão.
Em algum momento do ano letivo o Enéas sumiu. A notícia que recebi é que havia sido internado, em estado grave de desnutrição.
Ao retornar, ainda debilitado, fiz um combinado com a mãe dele, garantindo um litro de leite diário.
O Enéas renasceu, literalmente, e voltou pra escola com força total, como se nada tivesse acontecido, como se quisesse o mundo todo pra ele. A vivacidade e o carisma dele eram surpreendentes. Não deixava nenhum colega ficar triste ou aborrecido. E ajudava a todos, porque tinha uma facilidade impressionante para aprender as coisas rapidamente.
E passou a me dizer que o seu sonho era um violão...
Perturbei meu irmão até conseguir que ele desse um dos seus dois violões para o Enéas.
No ano seguinte, a turma passou para outra professora e seguimos.
(...)
Com essa turma e, especialmente, com o Enéas, compreendi que esse era o caminho que eu desejava para mim mesma. A força e a persistência desse menino me serviram de norte, me mostraram pelo que é que eu deveria lutar na vida, me deram o sentido da profissão que eu havia escolhido.
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Essa história passou a fazer parte do meu repertório, quando converso com professores pelo país afora, sobre a troca que existe, sobre como aprendemos com os nossos alunos, quando temos olhos de ver.
Nesses trinta anos, nos meus devaneios, eu sonhava, um dia, reencontrar o Enéas.
Era um sonho muito nítido: eu o encontraria no centro do Rio, ali na Rua da Carioca, e ele estaria com um violão, ou um cavaquinho, e me diria que estava estudando na Escola de Música Villa Lobos, que fica ali perto. Ou então, o encontraria tocando em algum grupo de chorinho num bar da Lapa (e todas as vezes que eu assistia a algum show, corria os olhos pra ver se achava o Enéas). Mas, que bobagem! Isso era um sonho.
(...)
No dia 31 de outubro desse ano, recebo uma mensagem do Peabirus, assim:
Caro(a),
Enéas Elpídio deixou um recado para você no PEABIRUS.
Olá, tudo bom, Denise? Eu ainda não sei mexer bem no Peabirus e não soube como te requisitar para ser meu contato. Então irei te mandar outra solicitação.
Muito obrigado e estou com saudade.
Seu aluno, a quem você ensinou as primeiras letras e tenta multiplicá-las a cada dia.
Um abraço afetuoso.
Enéas Elpídio
Clique aqui para acessar o perfil de Enéas Elpídio ou acesse http://www.peabirus.com.br/redes/form/perfil?id=14993
(...)
O Enéas, atualmente, dá aulas de Inglês, de Informática e de... violão e estudou na Escola de Música Villa Lobos.
Veio me visitar.
Trouxe de presente um... chorinho que compôs pra mim.
Denise Vilardo
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