quinta-feira, 14 de junho de 2007

Educação se faz com o corpo inteiro

"Falta à escola abordar o sentido da existência"
Frei Betto

Nunca se falou tanto na necessidade de uma escola plural, interdisciplinar, multicultural, holística. Uma escola que cuide da formação de um “ser integral”.

E, se até há alguns anos, essa necessidade era apontada pelos estudiosos da Educação numa concepção totalizante do processo educacional, baseada na não-fragmentação do conhecimento e no entendimento de que os seres humanos não são formados apenas de cognição, hoje é também uma exigência do mercado de trabalho. Algumas empresas, atualmente, no seu processo seletivo, pretendem averiguar, inclusive, a capacidade de sustentação emocional dos candidatos, além do seu potencial para trabalhar em equipe, dentre outras atitudes.

Mas, paradoxalmente, e por mais que estejamos vivenciando essa realidade, a escola – filha direta e dileta da tradição cartesiana – só se preocupa com a quantidade de informações que consegue passar (passar sim, e não construir). Ela continua se restringindo apenas à transmissão do patrimônio universalmente constituído, ignorando a reflexão sobre o contexto em que vivemos e pouco se importando com o potencial de modificação da realidade.

Essa idéia me faz lembrar de uma história infantil, de Ruth Rocha, chamada “Quando a escola é de vidro”, que começa assim:

“Naquele tempo eu até que achava natural que as coisas fossem daquele jeito. Eu nem desconfiava que existissem lugares muito diferentes... Eu ia pra escola todos os dias de manhã e quando chagava, logo, logo, eu tinha que me meter no vidro. É, no vidro! Cada menino ou menina tinha um vidro e o vidro não dependia do tamanho de cada um, não! O vidro dependia da classe em que a gente estudava. Se você estava no primeiro ano ganhava um vidro de um tamanho. Se você fosse do segundo ano seu vidro era um pouquinho maior. E assim, os vidros iam crescendo á medida em que você ia passando de ano. Se não passasse de ano era um horror. Você tinha que usar o mesmo vidro do ano passado. Coubesse ou não coubesse. Aliás nunca ninguém se preocupou em saber se a gente cabia nos vidros. E pra falar a verdade, ninguém cabia direito.”

Ao dicotomizar o sentido da aprendizagem, do sentido da existência, a escola separa o espaço do conhecimento do espaço da vida, dificultando a reflexão sobre o cotidiano. Como se o aumento da violência urbana não tivesse nada a ver com as políticas salariais, sociais e outros ais; como se a poluição do meio ambiente não tivesse nada a ver com interesses econômicos inconfessáveis.

Vivi uma experiência que exemplifica bem essa questão: fui chamada para dar aula particular para um aluno de 15 anos, que estava cursando, na época, a sétima série de um colégio da classe alta do Rio de Janeiro. Ele era redator-chefe do jornalzinho do colégio e estava, ironicamente, com notas péssimas em Língua Portuguesa. Ah, ele também tinha uma banda de rock, onde era baterista. No nosso primeiro encontro, pedi que ele me falasse um pouco de sua experiência de músico. Em seguida, pedi que escrevesse sobre esse fato. Imediatamente e, diga-se, com muita rapidez e fluência, escreveu um ótimo texto de duas páginas. Li tudo e propus que começássemos a analisar o primeiro período do seu texto. Ele me olhou, muito surpreso, sem entender exatamente o que eu pedia que fizesse, e comecei a explicar, dizendo que iríamos verificar, naquele parágrafo, quais elementos da estrutura sintática estavam presentes, tais como: sujeito, predicado, adjuntos, tipos de verbos etc. Ao que ele, absolutamente surpreendido, me perguntou: e quando eu escrevo tem isso?! Ou seja, para ele, o conteúdo da disciplina Língua Portuguesa não tinha a menor relação com o que ele falava ou escrevia. Isso é assustador! Não se tratava de um aluno desinformado, muito pelo contrário, tanto era atento ao mundo e competente na desenvoltura com a Língua, que escrevia regularmente no jornal do colégio. Mas, vivia massacrado pelas “orações subordinadas substantivas objetivas diretas”, que não faziam o menor sentido para ele.

Continuamos educando para a competitividade e para o sucesso. Para o “tem que dar certo, sempre, a qualquer custo”. Permanecemos ignorando as questões fundamentais dos seres humanos, como se os medos, frustrações, fracassos, morte não fizessem parte da vida dos nossos alunos. E, diante dessas situações, a instituição se cala e finge que elas não acontecem.

Um amigo meu sempre diz que, se não fôssemos perder todos os alunos do colégio que, juntos, coordenamos, deveríamos colocar uma faixa na frente do prédio, onde se leria: “Aqui preparamos para o fracasso”. Porque, fundamentalmente, nosso compromisso é com o ser humano. E se conseguirmos ajudar a formar o caráter e a personalidade dos nossos alunos para lidar com as adversidades da vida, estaremos cumprindo, inequivocamente, o nosso papel.

A escola continua distante do mundo e, pior, distante, dos próprios seres que a constituem.

Mais do que nunca, é preciso re-humanizar essa instituição formadora de homens e mulheres. Precisamos de pessoas sabidas, mas precisamos, fundamentalmente, de pessoas dignas, com boa formação de caráter, éticas e solidárias. É preciso socializar valores de justiça e respeito.

Talvez seja necessário lembrar que o ato de ensinar, supõe refazermos o caminho que nos trouxe até um determinado conhecimento. Talvez seja bom lembrar, também, que o sentido etimológico da palavra pedagogo é aquele que conduz, o guia, o mestre. E aí teremos aquele que retoma um caminho já percorrido, ampliando o já conhecido e formando novas concepções.

O ser humano já sabe do que é capaz de realizar. Só está faltando fazer melhor.

Denise Vilardo

5 comentários:

Osvaldo Ribetto disse...

Linguagem e medo global by Eduardo Galeano.
Na era vitoriana, as calças não podiam ser mencionadas na presença de uma senhorita. Hoje, não fica bem dizer certas coisas na presença da opinião pública. O capitalismo ostenta o nome artístico de economia de mercado, o imperialismo chama-se globalização. As vítimas do imperialismo chamam-se países em vias de desenvolvimento, o que é como chamar de crianças aos anões. O oportunismo chama-se pragmatismo, a traição chama-se realismo. Os pobres chamam-se carentes, ou carenciados, ou pessoas de escassos recursos. A expulsão das crianças pobres do sistema educativo é conhecida sob o nome de deserção escolar. O direito do patrão a despedir o operário sem indemnização nem explicação chama-se flexibilização do mercado laboral. A linguagem oficial reconhece os direitos das mulheres entre os direitos das minorias, como se a metade masculina da humanidade fosse a maioria. Ao invés de ditadura militar, diz-se processo. As torturas chamam-se pressões ilegais, ou também pressões físicas e psicológicas. Quando os ladrões são de boa família, não são ladrões e sim cleptómanos. O saqueio dos fundos públicos pelos políticos corruptos responde pelo nome de enriquecimento ilícito. Chamam-se acidentes os crimes cometidos pelos automóveis. Para dizer cegos, diz-se não visuais, um negro é um homem de cor. Onde se diz longa e penosa enfermidade deve-se ler cancro ou SIDA. Doença repentina significa enfarte, nunca se diz morte e sim desaparecimento físico. Tão pouco são mortos os seres humanos aniquilados nas operações militares. Os mortos em batalha são baixas, e as de civis que a acompanham são danos colaterais. Em 1995, aquando das explosões nucleares da França no Pacífico Sul, o embaixador francês na Nova Zelândia declarou: "Não me agrada essa palavra bomba, não são bombas. São artefactos que explodem". Chamam-se "Conviver" alguns dos bandos que assassinam pessoas na Colômbia, à sombra da protecção militar. Dignidade era o nome de um dos campos de concentração da ditadura chilena e Liberdade a maior prisão da ditadura uruguaia. Chama-se Paz e Justiça o grupo paramilitar que, em 1997, metralhou pelas costas quarenta e cinco camponeses, quase todos mulheres e crianças, no momento em que rezavam numa igreja da aldeia de Acteal, em Chiapas. IN: http://resistir.info/galeano/galeano_medo_global.html

lucilia disse...

Parabéns! Adorei os textos e a oficina do blog foi ótima.
Lucília

Jenny Horta disse...

Infelizmente, um texto tão coerente e realista que fará 3 anos em junho e está mais atual do que nunca! Ah! gostaria muito, apesar de admirar muito sua coerência, poder dizer-lhe que já não é bem assim.
Grande abraço

Rocio Rodi disse...

A sua escrita final para mim é provocativa e convida a pensar e questionar. As pessoas desconhecem o seu potencial. Ainda há muito que aprender, principalmente, reconstruir o seu próprio mundo, vivenciar o seu processo de subjetivação mediante identidades culturais com ajuda de bons mediadores e interlocutores. As novas gerações sentem necessidade de reinventar o vivido, interpretar o percebido e conceber novas concepções, processo das (co)autorias. Algumas perdas, lacunas, insucessos às mediações... Seria bom que todos já fossem "politicamente/pedagogicamente corretos". Somos perfectívieis. Estamos amadurecendo nas relações, porém, às vezes "nos" esquecemos nesse turbilhão. As incertezas, as buscas, o cansaço sobrevêm... É preciso resgatar por vezes o amor próprio, o amar a si mesmo, a autoestima. Seu texto nos ajuda a pensar na geração atual e como nos situamos nesse mundo na função educadora que aprende a lidar também com as inversões de papéis. Os jovens e as crianças nos ensinam. A tecnologia fascina bastante. Um abraço!

MAIRA MIRANDA disse...

Passei para conhecer seu espaço;
Gostei muito!
As aflições que nos ocorrem na nossa caminhada pedagógica só demonstra o quanto nos preocupamos com a qualidade de nosso trabalho e com o futuro dos educandos.
Parabéns!

Maira Miranda
http://profmairatarrago.blogspot.com